Depois de o prefeito não entregar as chaves do Rio para o Rei Momo em
2017, parece que o mundo virou de costas para o carnaval. Agora, nas
franjas da reabertura da Sapucaí, as escolas passam o pires, enquanto
juntam os cacos desta dura realidade: sofrem uma crise de identificação
com seus valores. No começo do ano, o evento Encontro do Samba, em
Copacabana, reunião de baterias do Grupo Especial, custou em torno de R$
4 milhões aos cofres públicos (quantia expressa no Diário Oficial, com o
cachê para cada agremiação de cerca R$ 125 mil) — montante total
próximo àquilo que a Liesa disse não possuir para bancar os ensaios
técnicos, cancelados em 2018. Sem questionar a real importância da
visibilidade da farra na praia mais famosa do Brasil, a prefeitura
parece dar um recado sem rodeios: escola de samba, na orla, para turista
ver, é “bonito” e “limpinho”. Mas na sua casa, o Sambódromo, com ensaio
gratuito, bem, neste caso melhor esperar o fim das vacas magras. Ou ir
esquecendo... Até acabar. A nova versão de banho de mar à fantasia pode,
sim, ser bonita e popular na quentura dos janeiros do Rio. Mas a quebra
da representatividade rotineira das entidades foliãs — os ensaios, a
vocação para transmitir saberes ancestrais omitidos pelos colégios, a
função de polos culturais de regiões esquecidas — é grave.
Eis o desafio: mostrar que a folia não é bicho que nasce por geração
espontânea no começo do ano, para habitar um casulo de março a dezembro.
Há vida pulsante diária, justamente quem vai possibilitar os ensaios
técnicos, os desfiles e, vá lá, até os eventos praianos para a elite
bater tambor com o povo que cruza o túnel. Acontece que, hoje, o
coração, incluído o deste tal povão, ficou frio. Falha sem dono único,
distribuída entre sambistas, governo, e na conta também da visão
histórica deturpada sobre o valor da cultura popular: acima do Equador,
artigo de luxo; aqui, peça de segunda mão.
Ora, quando Crivella cria uma guerra carnaval versus educação,
transferindo metade da verba (R$ 1 milhão a menos para cada agremiação)
de um para a outra, com a negação da complementaridade dos temas, ataca
um bem público que simboliza a cidade. Já os grêmios ainda patinam na
zona arenosa que é a necessária gestão empresarial, aliada ao
entendimento de que sobrevivem há quase cem anos porque são entidades
difusoras de arte e conhecimento.
Os dados da Riotur são irrefutáveis: a folia movimentou R$ 3 bilhões em
2017. Isto significa geração de renda, ainda que em parte informal,
economia real (e de guerra) para muitos. Batizada sem água benta “O
maior espetáculo da Terra”, urge evolução para além do discurso
marqueteiro. Afinal, por desvio de formação, jamais fomos ensinados a
louvar festas nossas — o ato de festejar — como algo produtivo e, vá lá,
sério. Sim, o momento de maior desenvolvimento do Brasil é o carnaval,
inclusão e evolução, espiritual e financeira. Não se trata de mera
inversão de papéis baseada em fantasia, aquela coisa do mendigo que vira
rei com coroa de papelão. Por ironia fina, no calor dos corpos suados
de samba, chegamos pertinho do delírio de uma Suécia tupiniquim. É
quando chora o cavaco que o país vê, enfim, seu sonho realizado. Axé!
Fábio Fabato é jornalista e escritor
FONTE: JORNAL O GLOBO
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